Devassa da vida privada – artigo 192.º do Código Penal
[Contribuição de Mário Serra Pereira]
A vida e a imagem de alguém podem ser violadas de forma muito intensa através da fotografia, sendo essa circunstância merecedora de forte censura social. Por este motivo, o Código Penal[1] prevê especificamente dois tipos de crimes: o de devassa da vida privada (artigo 192.º) e o de gravações e fotografias ilícitas (artigo 199.º).
Neste artigo serão vistas algumas questões relacionadas com a devassa da vida privada. No próximo artigo aborda-se o crime de gravações e fotografias ilícitas. Num terceiro artigo serão vistos aspetos comuns aos dois tipos de crime, em especial no que respeita à necessidade de queixa e à medida da pena.
Código Penal
Dispõe o n.º 1, al. b) do artigo 192.º do Código Penal que quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas (designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual), captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objetos ou espaços íntimos é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
Decorrem deste preceito a falta de consentimento e a intenção de devassar a vida privada subjacentes ao ato de fotografar ou filmar a vida privada de alguém. Por oposição, com consentimento – logo, sem devassa –, a captação de imagens em espaços íntimos pode ser realizada. Igualmente, a devassa comprovadamente não intencional ou simplesmente negligente também não merece o mesmo grau de censura, podendo ser punível de modo diferenciado e menos intenso.
Quando é que um fotógrafo pode incorrer neste tipo de crime?
Crê-se que o artigo em apreciação é razoavelmente elucidativo em si próprio, podendo facilmente um fotógrafo compreender as diversas situações em que procede à captação de imagens sem consentimento e com intenção de devassar a intimidade de alguém.
São muitas as situações relatadas por órgãos de comunicação social dando conta de câmeras ocultas em balneários, de fotografias através da janela, com teleobjetivas ou obtidas explorando a intimidade em ângulos e tomadas de vista menos evidentes para o cidadão comum e desprevenido em plena via pública.
Resultando óbvia a devassa nestes casos, pode colocar-se a questão da fotografia (recorrente) em revistas da vida social, a propósito da intimidade de personalidades que vivem de algum modo da sua exposição pública. Pese embora assim seja com atores e outras figuras mediatizadas, a verdade é que a sua intimidade se encontra tão protegida como relativamente ao cidadão comum e a penalização para uma violação desta natureza é idêntica. Não raras vezes são publicadas fotografias delicadas no seu conteúdo, por registarem momentos de intimidade de figuras públicas, mas também se verifica com frequência que essas publicações são objeto de sanção judicial.
Jurisprudência
É, assim, relevante conhecer o que, sobre esta matéria, entendem os tribunais.
Em 2012, o Tribunal da Relação de Évora[2], entendeu como ajustada a quantia de €15.000,00 atribuída a título de danos não patrimoniais a uma mulher após a exposição pública de imagens da sua vida íntima. Esta divulgação foi intencionalmente levada pelo arguido ao conhecimento de inúmeras pessoas, num pequeno núcleo urbano, com o propósito de devassar a vida privada da mulher, em especial a sua intimidade sexual. Em concreto, após o termo de uma relação amorosa, o homem expôs publicamente fotos íntimas da mulher em cafés da localidade.
Em 2013, o Tribunal da Relação do Porto[3] entendeu que «não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a proteção de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente». Neste caso, a presença de dois homens, acusados de furto de gasóleo, numa gasolineira foi confirmada por imagens captadas por um sistema de videovigilância ali instalado, autorizado para proteção dos seus bens e da integridade física de quem aí se encontre.
Entendeu o Tribunal que «não é proibida a prova obtida por sistemas de videovigilância colocados em locais públicos, com a finalidade de proteger a vida, a integridade física, o património dos respetivos proprietários ou dos próprios clientes perante furtos ou roubos, pois que as imagens não são captadas em locais privados, total ou parcialmente restritos, nos quais, segundo as conceções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, justificando-se, pois, essa exceção aos métodos proibidos de prova por razões de polícia ou de justiça». E salienta que «o próprio artigo 79º/2 C Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça».
Mais tarde, em 2016, o Tribunal da Relação de Évora[4] julgou que «é, em princípio, admissível a valoração das fotografias ou filmes que não tenham sido obtidos de forma penalmente ilícita».
Neste processo estava em causa a admissibilidade de uma filmagem numa garagem com vista a apurar quem danificava sistematicamente uma viatura ali estacionada. Em geral, como salienta o Tribunal, é «inadmissível e proibida a valoração de qualquer registo fotográfico (fílmico, vídeo, etc.) que, pela sua produção ou utilização, constitua o seu agente em autor de um crime de Gravações e fotografias ilícitas, previsto entre os Crimes contra outros bens jurídicos pessoais no artigo 199º do C.Penal, ou de um crime de Devassa da vida privada, previsto no artigo192.º do C.Penal entre os crimes contra a reserva da vida privada». Porém, no caso concreto, o Tribunal entendeu que «filmar a materialidade de autoria de um crime e (…) utilizar posteriormente o vídeo como prova do facto (…) pode ser lícito, por exemplo, se quem filmou agiu ao abrigo do direito de necessidade (Artigo 34º do Código Penal), o que vale tanto para a obtenção do vídeo como para a sua posterior utilização em processo-crime, pois esta utilização constitui a concretização daquele mesmo fim».
[1] Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, e respetivas alterações. Disponível em www.dre.pt
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora Proc. 267/08.6TAVRS.E1, de 14-12-2012, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/020044afc6cc26eb80257de10056f741?OpenDocument
[3] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Proc. 201/10GAMCD.P1, de 16-01-2013, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/7b0f88592bf43c6d80257b0300533562?OpenDocument
[4] Acórdão do TRE de 29-03-2016, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/cc3cf9ccd76a07e280257f93004ecfe6?OpenDocument
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